Da ternura



Alvaro reja _ pintura onírica

Quadro de Álvaro Reja (não encontrei o título). Para ir à fonte, clique sobre a imagem.



Por Leonardo Boff, 16/02/2014

TERNURA: A SEIVA DO AMOR

Leonardo Boff

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O verso 11 do Cântico Espiritual do místico São João da Cruz, que são canções de amor entre a alma e Deus, diz com fina observação: “a doença de amor não se cura sem a presença e a figura”. Não basta o amor platônico, virtual ou à distância. O amor exige presença. Quer a figura concreta que é mais mais que o pele-a-pele mas o cara-a-cara e o coração sentindo o palpitar do coração do outro.

         Bem diz o místico poeta: o amor é uma doença que, nas minhas palavras,  só se cura com aquilo que eu chamaria de ternura essencial. A ternura é a seiva do amor. “Se quiseres guardar, fortalecer, dar sustentabilidade ao amor, seja terno para com o teu companheiro ou a tua companheira”. Sem o azeite da ternura não se alimenta a chama sagrada do amor. Ela se apaga.

         Que é a ternura? De saída, descartemos as concepções psicologizantes e superficiais que identificam a ternura como mera emoção e excitação do sentimento face ao outro. A concentração só no sentimento gera o sentimentalismo. O sentimentalismo é um produto da subjetividade mal integrada. É o sujeito que se dobra sobre si mesmo e celebra as suas sensações que o outro provocou nele. Não sai de si mesmo.

         Ao contrário, a ternura irrompe quando a pessoa se descentra de si mesma, sai  na direção do outro, sente o outro como outro, participa de sua existência, se deixa tocar pela sua história de vida. O outro marca o sujeito. Esse demora-se no outro não pelas sensações que lhe produz, mas por amor, pelo apreço de sua pessoa e pela valorização de  sua vida e luta. “Eu te amo não porque és bela; és bela porque te amo”.

         A ternura é o afeto que devotamos às pessoas nelas mesmas. É o cuidado sem obsessão. Ternura não é efeminação e renúncia de rigor. É um afeto que, à sua maneira, nos abre ao conhecimento do outro. O Papa Francisco, no Rio, falando aos bispos latino-americanos presentes cobrou-lhes “a revolução da ternura” como condição para um encontro pastoral verdadeiro.

          Na verdade, só conhecemos bem quando nutrimos afeto e nos sentimos envolvidos com a pessoa com quem queremos estabelecer comunhão. A ternura pode e deve conviver com o extremo empenho por uma causa, como foi exemplarmente demonstrado pelo  revolucionário absoluto Che Guevara (1928-1968). Dele guardamos a sentença inspiradora: ”hay que endurecer pero sin perder la ternura jamás”. A ternura inclui a criatividade e a auto-realização da pessoa junto e através da pessoa amada.  

          A relação de ternura  não envolve angústia porque é livre de busca  de vantagens e de dominação. O enternecimento é a força própria do coração, é o desejo profundo de compartir caminhos.  A angústia do outro é  minha angústica, seu sucesso é  meu sucesso e sua salvação ou perdição é minha salvação e minha perdição e, no fundo, não só minha mas de todos.

          Blaise Pascal(1623-1662), filósofo e matemático francês do século XVII, introduziu uma distinção importante que nos ajuda a entender  a ternura: o esprit de finesse e o esprit de géometrie.

         O esprit de finesse é o espírito de finura, de sensibilidade, de cuidado e de ternura. O espírito não só pensa e raciocina. Vai além porque acrescenta ao raciocínio sensibilidade, intuição e capacidade de sentir em profundidade. Do espírito de finura nasce o mundo das excelências, das grandes sonhos, dos valores e dos compromissos para os quais vale dispender energias e tempo.

         O esprit de géometrie é o espírito calculatório e obreirista, interessado na eficácia e no poder. Mas onde há concentração de poder, aí não há ternura nem amor. Por isso pessoas autoritárias são duras e sem ternura e, às vezes, sem piedade. Mas é o modo-de-ser que imperou na modernidade. Ela colocou num canto, sob muitas suspeitas, tudo o que tem a ver com o afeto e a ternura.

         Daí se deriva também o vazio aterrador de nossa cultura “geométrica” com sua pletora de sensações, mas sem experiências profundas; com um acúmulo fantástico de saber, mas com parca sabedoria; com demasiado vigor da musculação, do sexualismo, dos artefatos de destruição mostrados nos serial killer, mas sem ternura e cuidado de uns para com os outros, para com a Terra, para com seus filhos e filhas, para com o futuro comum de todos.

         O amor é a vida são frágeis. Sua força invencível vem da ternura com a qual os cercamos e sempre os alimentamos.

Leonardo Boff é autor de A força da ternura. Rio de Janeiro: Mar de Idéias, 2012.

Sobre Ani

Outros que contem passo por passo | Eu morro ontem | Nasço amanhã | Ando onde há espaço: | – Meu tempo é quando. ~Vinicius de Moraes~
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