A canção e o insight

O acontecimento responsável pelo insight decisivo sobre o quanto uma língua funciona como fator de compartilhamento ou como muro que nos separa, o acontecimento definitivo para que eu decidisse aprender espanhol, foi aos 18 anos, numa viagem a Machu Picchu, no Peru, indo por terra, pela Bolívia. Nosso grupinho de brasileiros encontrou gente de muitos países pelo caminho, especialmente hispano-falantes. Nenhum de nós falava um nada de espanhol, mas íamos sobrevivendo bem, capazes até de conseguir carona em boléia de caminhão, de trocar presentes sem trocar palavras com os índios companheiros de carona: um cigarro que nos pediram por um punhado de folhas de coca que eles iam mascando, para ajudar com o ar rarefeito da altitude. Com os povos indígenas do campo, tínhamos aprendido em La Paz, tampouco adiantaria muito tentar ensaiar algum espanhol: muitos só falavam aimará ou quíchua. E os mal-entendidos ou não-entendidos estavam sendo até divertidos. Cruzando o Titicaca na canoa que nos levou da margem boliviana à margem peruana, um bando de abobalhados bebendo água do lago com as mãos, nós cantávamos era mesmo no português do Gilberto Gil: “Andes, por onde andes, andará meu coração“. Do outro lado do Titicaca, o Peru parecia agradecer nosso entusiasmo com o lago sagrado: era bem naquela noite a festa de Nossa Senhora da sua Copacabana, com suas bebidas de milho. Quando já voltávamos para casa, lá por Cochabamba, um grupo que vinha para o Brasil se uniu a nós nas trilhas dos ônibus e trens: três chilenos e um argentino. Alguém dos brasileiros tirava uma com a minha cara: “Isso deve ser amor”. É que eu era a única pessoa de nós que entendia o que dizia um dos chilenos, o que vinha fugindo da ditadura do Pinochet (por ser líder estudantil), e que me convenceu à aventura estranha (e perigosa) de viajar boa parte do tempo no teto do trem. Antes, na estação de espera do trem da morte, nossos acompanhantes falantes de espanhol começaram a cantarolar juntos uma canção argentina, pelo visto bem conhecida também no Chile, mas ilustremente desconhecida pelo nosso grupo brasileiro. Adorei (como tinha me apaixonado pela sonoridade da palavra ciudad). Acabou ficando na memória como alguma coisa meio dor-de-cotovelo. Pouco depois de chegar de volta comecei a estudar espanhol, um pouco antes do boom que a língua teve nos centros de línguas com o Mercosul. Mas só reencontrei aquela canção uns bons anos depois, quando por acaso ganhei uma fita de uma conhecida que tinha morado alguns anos na Argentina. Reconheci quando escutei as primeiras estrofes, com seus castillos de cristal e pompas de jabón. Era do Sui Generis, uma conhecidíssima dupla que o conhecidíssimo (não no Brasil) roqueiro Charly García (o que toca piano no vídeo) integrou quando era jovenzinho, e levou o Sui Generis ao sucesso dentro e fora da Argentina. O que Argentina e Chile cantavam juntos esperando o trem da morte na Bolívia, e nos revelava impiedosamente o quanto estávamos do lado de lá do muro, o quanto parecíamos ilhados da América Latina, era a Canción para mi muerte. Foi o empurrão decisivo para querer cruzar as fronteiras dessa língua rumo aos mundos vizinhos e suas até então ignoradas ciudades. De repente, era mesmo algum tipo de amor adormecido o que estava despertando por ali. Aí vai.

CANCIÓN PARA MI MUERTE
Sui Generis

Hubo un tiempo que fue hermoso
y fui libre de verdad
guardaba todos mis sueños
en castillos de cristal.

Poco a poco fui creciendo
y mis fábulas de amor
se fueron desvaneciendo
como pompas de jabón.

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararás la cama
para dos.

Es larga la carretera
cuando uno mira atrás
vas cruzando las fronteras
sin darte cuenta quizás.

Tomáte del pasamanos
porque antes de llegar
se aferraron mil ancianos
pero se fueron igual.

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararás la cama
para dos.

Quisiera saber tu nombre
tu lugar, tu dirección
y, si te han puesto teléfono,
también tu numeración.

Te suplico que me avises
si me vienes a buscar
no es porque te tenga miedo
sólo me quiero arreglar.

Te encontraré una mañana
dentro de mi habitación
y prepararás la cama
para dos.

Sobre Ani

Outros que contem passo por passo | Eu morro ontem | Nasço amanhã | Ando onde há espaço: | – Meu tempo é quando. ~Vinicius de Moraes~
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