Com a licença de mãe Oxum e pai Oxóssi, uma homenagem à Rainha do Mar. Canto de Bethânia e texto de Ju Pagul. Odo-ya, rainha Iemanjá.

Quando eu morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto ao mar.~Sophia de Mello Breyner Andresen~
IEMANJÁ, PRESENTE DAS ÁGUAS
Ju Pagul, em Blogueiras Feministas
Dia 02 de fevereiro por todo litoral brasileiro praias são banhadas de rosas, perfumes, barquinhos, presentes e infinitas cores e mergulhos. A motivação dos festejos é Iemanjá, orixá feminina, mãe das águas, Rainha do mar. Odo-ya, sua saudação, vira canto. E ela sereia, nas ondas, nos banhos vem receber as oferendas e retribuir os agrados.
Moro longe do mar. Mas há anos um impulso certeiro me leva pra areia, pra brisa e os ventos desta que considero a festa mais bonita. Em cada edição um novo tesouro é revelado. Do Rio Vermelho (Salvador/BA) trago as lembranças da madrugada, das velas acesas, do pé no chão, daquela horinha sagrada, na hora grande, de silêncio e fé.
Tenho aqui o despertar destes encantos levinhos, do cheiro de dendê e da família de fé, imensa, que vira noite e dia entre capela, fonte, atabaques e banhos. Foi no Rio Vermelho que aprendi a sereiar. Do feitio fantástico do balaio de flores até a comida que alimenta a família, nossa gente de fé e a banda (inteira!) do bairro.
Desde o Rio Vermelho meu barravento navega mar de farturas e solidariedade. Sempre guiado pela reverência ao legado dos povos de matriz africana, cuja resistência voraz e inspiradora permite que esta força se multiplique e seja reconhecida e celebrada aos sete mares. Para que nos oceanos onde a maré avessa prevaleça esta mesma força que nos banha.
Esta vivência nos festejos, nas casas (ou ilês) são compartilhados saberes seculares transmitido oralmente. Cultuar é experiência vivida, que fertiliza muitas culturas. São cultuados comumente inventores de objetos, utensílios, fórmulas… Da vivência nos terreiros aprendi a cultuar inventoras. Pois, cada terreiro é uma reinvenção de mundos. Nascem ali sabedorias, sentidos e emoções.
Aprendi que tesouro mesmo é nossa subjetividade e psique profundas. E são nestes mares que navegam nossas ancestrais e as nossas futuras, compartilhamos todas das mesmas águas. Penso que algumas mergulham mais fundo que outras. E quanto mais fundo mergulhamos, sentimos necessidade das cores, da soberania, do transcender, da coragem, do cuidado, da justiça, da beleza, da bondade e da diversidade.
A Bahia e seu legado inspiraram um belo livro sobre “Besouro do Manganga”, o mitológico capoeirista do recôncavo. No livro tem uma frase que não me sai da mente e coração: “mulher é mistério e mistério não convém contrariar”. A capoeira está para o corpo, assim como os orixás para alma. Alimentos em canto, toques e danças de sobrevivência, emponderamento, liberdade.
Inspirada nesta maré, busco convergir todas que sou. E flui o encontro da sacerdotisa com a feminista, sem entraves. Como Rio que corre pro mar. Como as praias que são oceanos buscando romper os limites (em toadas, encantadoras), forçando e expandido a terra-areia. A prática feminista é culto de liberdade. Insistir em vida plena. E tornar-se senhora dos mares que escolho navegar e dona dos mistérios que trago.
Mas mulher é tanto e tantas que não cabe em definição alguma. E acho uma delícia de metáfora pensar nossos mistérios como os do mar e suas profundezas. O ser humano conhece pouco do próprio oceano… Iemanjá guarda suas águas profundas.
Certa vez, num 2 de fevereiro, litoral de Santa Catarina, reuni inventoras fantásticas. Era noite e muitos atabaques encantavam a praia. Nesta festa reuni Mestra Elma (minha mestra de capoeira angola), a mãe de Santo Zenith de Oxum –sacerdotisa que me iniciou no cultuo e portanto minha eterna mãe, e uma Yadekan que cantava e tocava vigorosamente, parecia uma maquina-do-tempo em atividade… levava todo mundo para África.
Ali com estas três mulheres descobri a que vai além dos limites, a que assume a coragem e o canto e a que domina as energias, devolvendo à Natureza o que excede. E hoje, neste 2 de fevereiro de 2012, escrevo banhada por Mãe Iemanjá no Rio de Janeiro. Fui a uma festa comandada por Mãe Beata.
Nesta madrugada celebramos Iemanja com oferendas, cantos, danças e até cortejo. E sempre na oralidade, mais uma vez, reservamos um tempo pra compartilhamos ensinamentos. Ali celebramos o axé (que significa força). A fecundidade, que me fez pensar no protagonismo feminino no culto aos orixás. Conversando com mãe Beata, me surpreendo. A matriarca fala da importância do estado laico.
“Faço minha parte. Somos todas ao mesmo tempo. Não vamos medir a distância que temos umas das outras, todas que quiserem podem me copiar. Minha vida, venci puxando até desfazer todos os nós”.
E quando os atabaques silenciaram, ao final da incrível cerimônia, ela disse: “Eu não tenho palavras para descrever e agradecer esta cultura. Para isto, dou meu sangue”. Ah, dezenas de olhos marejaram! Pensei nos nossos fluxos, como ondas… viva às flores ao mar.